O Relacionamento Mãe-Filho nos primeiros meses
Por Vanilde Gerolim Portillo
28/10/2001
A relação mãe-filho, tão importante para o desenvolvimento do ego da
criança, se inicia bem cedo. Neumann salienta que sendo o ser humano
incapaz de ser independente logo após o nascimento, diferentemente
dos demais animais, prorroga sua fase embrionária para além do
nascimento. A fase embrionária compreende, então, os 9 meses
intra-uterinos e mais 1 ano pós-uterino. Nesta fase, a criança vive
o inconsciente da mãe, está ligada à mãe fisicamente e
psicologicamente, dependendo dela para tudo. Após esta fase, a
criança inicia seu processo de desligamento da mãe, juntamente com a
formação e fortalecimento do ego.
Para a Psicologia Analítica, a consciência surge a partir do
inconsciente, primeiramente como pequenos sinais fugazes, depois
como pequenas ilhas que surgem ao longo do oceano até formar um
arquipélago.
O Self, como centro da personalidade total, é pré-existente ao ego e
toda a atividade psíquica é ordenada por ele. O Self delega ao ego a
responsabilidade de coordenar a consciência e a relação da
personalidade com o mundo exterior. Sua principal tarefa será
atender as exigências do mundo interno e externo, dando sentido e
continuidade, coesão e unidade à personalidade.
Na relação mãe-filho, nos primeiros meses, a qual Neumann chamou de
“relação primal mãe-filho”, a criança vive e experimenta o corpo da
mãe como sendo ela mesma e o mundo. Não possui consciência capaz de
discernimento, percepção e controle do seu próprio corpo.
Entretanto, apesar desta fase ser ausente de consciência, é possível
a ocorrência de experiências. São experiências vivenciadas sem a
dicotomia sujeito-objeto, mundo interno-externo, tal como ocorre com
o adulto, mas são experiências vivenciadas através da união de mãe e
filho, já que o filho está indiferenciado tanto do corpo como da
psique da mãe. Assim como aparece a fome e instala-se o desconforto,
aparece o seio nutridor que restaura o conforto. Os dois
sentimentos, para o bebê, emergem da mesma fonte.
Salienta Neumann: “Para a criança nessa fase, a mãe não está nem
dentro nem fora; para a criança os seios não fazem parte de uma
realidade separada de si e externa; seu próprio corpo não é
experimentado como seu. Mãe e filho continuam tão interligados como
na fase uterina, como se formasse uma unidade; só que a unidade que
formam é dual.”
Para a mãe esta fase também é unitária, mas como a mãe já tem um ego
desenvolvido, e em sua personalidade total existe o eu e o outro, o
eu e o mundo, somente uma parte dela fica mergulhada nesta unidade,
enquanto que para a criança o mundo da mãe é o mundo total, é seu
próprio Self.
A criança vive esta fase com um mínimo de tensão e um máximo de
segurança. Não existem conflitos porque não existe o eu-tu; só
existe o paraíso no continente da mãe. O mundo do adulto,
entretanto, é caracterizado pela tensão e conflito, onde o ego fica
entre o Self e o mundo externo tentando equilibrar-se entre os dois
e não se identificando com nenhum dos lados.
É necessário haver uma base sólida edificada com confiança e
segurança durante a relação primal, onde o ego poderá encontrar o
caminho do desenvolvimento sadio.
A medida em que a criança vai se desenvolvendo dentro da relação
primal, o Self da criança, que é percebido como se fosse a própria
mãe, vai gradativamente se deslocando para o interior da criança.
Neumann observa que “A remoção do Self da mãe do campo da realidade
unitária acompanha a dissolução gradual da união dual característica
da relação primal.”
Esta fase final da relação primal caracteriza-se pela consolidação
do ego e início do desenvolvimento da consciência. O estabelecimento
de uma relação entre o ego e o Self também se faz presente e é de
extrema importância para o desenvolvimento da psique. Embora este
desenvolvimento ocorra gradualmente, há uma forte tendência, na
criança, de manter-se nesta relação simbiótica com a mãe, porque
depende dela materialmente e psicologicamente. Uma ruptura abrupta
nesta relação causará danos irreparáveis ao desenvolvimento da
criança. A ausência da figura materna poderá provocar uma perda de
contato com o mundo e deficiências na formação do ego. Para Neumann
“A relação primal é a expressão de uma capacidade de relacionar-se
de maneira total, como fica dramaticamente demonstrado pelo fato de
que, para uma criança, a sua falta pode provocar distúrbios
emocionais de ordem tal que culminam em apatia, em idiotia e até
mesmo a morte. A perda da mãe representa muitíssimo mais do que
apenas a perda de uma fonte de alimentos. Para um recém-nascido –
até mesmo quando continua sendo bem alimentado – equivale à perda da
vida. A presença de uma mãe amorosa que fornece alimentação
insuficiente não é de forma alguma tão desastrosa quanto à de uma
mãe pouco afetuosa que fornece alimento em abundância.”
As características da mãe ideal da relação primal são aquelas que
emanam do maternal contido na Grande Mãe, ou seja, é a pessoa que
alimenta, protege, dá segurança e permite uma ligação afetiva com a
criança. A mãe pessoal é movida, inconscientemente, pelo arquétipo
da Grande Mãe, que possibilita, ao filho, um desenvolvimento
saudável, capacitando-o a enfrentar o mundo com segurança. Os
desvios tanto no bom quanto no mau sentido, causarão efeitos
danosos. A maneira como a mãe lida com os aspectos da maternidade
por exemplo, dispensando atenção em demasia ou negando atenção;
ausentando-se mesmo que involuntariamente; estado psicológico
desfavorável e juntando-se a tudo isso, a qualidade das projeções
arquetípicas do filho, poderão trazer problemas na formação da
personalidade da criança muitas vezes irremediáveis.
A situação psicológica da mãe é, de fato, muito importante para o
desenvolvimento da criança, porque ela vive numa fusão também
psicológica com a mãe. Jung se referia a este estado como uma
verdadeira “participation mystique”, para Neumann é um estado onde
“o filho inconscientemente “lê” o inconsciente da mãe na qual vive,
da mesma forma que – normalmente – a mãe exerce uma função
reguladora ao reagir inconscientemente à conduta inconsciente do
filho.” Para Jung “A portadora do arquétipo é, em primeiro lugar, a
mãe pessoal porque a criança vive, inicialmente num estado de
participação exclusiva, isto é, numa identificação inconsciente com
ela. A mãe não é apenas a condição prévia física, mas também
psíquica da criança.”
Segundo ele, os problemas psíquicos das crianças têm sua etiologia
na psique dos pais. As crianças, até mais ou menos a puberdade,
vivem numa comunhão inconsciente com os pais, principalmente com a
mãe.
A confiança que o ego da criança, em formação, deposita no Self
representado pela mãe, permitirá à criança experimentar e enfrentar
o mundo sem medo. A mãe-Self, a Grande Mãe, que apazigua as tensões,
que é continente e protetora, cria condições para que o ego se lance
ao mundo e enfrente os aspectos negativos e integre-os a si mesmo.
Se a passagem do Self, projetado na mãe, para dentro da criança for
feita gradualmente, possibilitando ao ego manter contato com o Self,
formando o eixo ego-Self, o desenvolvimento saudável da criança
estará garantido.
A qualidade do amor na relação primal estabelecerá a qualidade das
relações do indivíduo com o mundo interno e externo quando a criança
se desligar da mãe. O que conta nesta relação é a qualidade do amor
e não a quantidade de amor que a mãe dispensa ao filho. O amor em
excesso e possessivo sufoca e gera dependência, insegurança e
incapacidade de lidar com as frustrações.
Quando a mãe inunda o filho com amor, fazendo tudo por ele,
protegendo-o contra as mínimas frustrações acaba por tornar-se um
grande empecilho na vida do filho, porque este excesso de amor tem
um preço e, sem dúvida, será cobrado pela mãe. As razões para este
comportamento da mãe são várias e no cerne desta dúbia doação
encontram-se conflitos mal resolvidos como problemas com o marido,
por exemplo: não ama o marido ou não é amada por ele; o marido é bem
mais velho; o marido é ausente; a mãe é viúva, etc.
Uma mãe em uma dessas condições não tem como dar vazão ao amor que
transborda e vê o filho como uma única saída. Cobre-o de mimos e o
rebento corre o risco de ficar preso à mãe que não o deixa crescer.
Também, salienta Neumann, “Existem mães cuja genuína capacidade de
amar é subdesenvolvida, atrofiada ou envenenada e que, como
compensação de sua anti-realização, arremessam-se sobre seus filhos
não para lhes dar excesso de amor, mas para preencher seu próprio
vazio através do filho.”
Outros fatores, não menos importantes, influenciam a qualidade da
relação primal, por exemplo; se a criança foi desejada ou não, se o
sexo era o desejado ou não, se a mãe constela complexo de
inferioridade em relação ao seu próprio sexo, etc.
A criança associa os aspectos negativos da relação com a mãe como
provenientes da mãe-terrível e os positivos provenientes da mãe-boa,
estes dois aspectos estão contidos no arquétipo materno. O amor
excessivamente sufocante é um aspecto associado à mãe-terrível.
Como vimos, todo arquétipo possui dois aspectos: um favorável e
outro desfavorável; a cada fase do desenvolvimento do ego haverá uma
tendência de manter o ego fixado num destes aspectos do arquétipo
dominante, ou seja, o arquétipo que dominará a fase seguinte
mostrará sua face positiva como que atraindo o ego para a mudança de
fase e o arquétipo dominante da fase atual mostra sua face terrível,
ameaçando o ego que se apressa em se deslocar para a fase seguinte.
Para Neumann “O medo que o ego sente do aspecto terrível da fase
aderente demonstra ter um propósito, pois facilita ou torna
necessária a transição; na verdade, esse medo é mobilizado pelo
Self. Em cada estágio do desenvolvimento, o Self encarna-se num
arquétipo, conquanto não se torna idêntico a ele. Deste modo, sua
manifestação muda de fase para fase; aparece primeiro no arquétipo
da mãe, depois no arquétipo do pai; a seguir, como Self Grupal, e
então como Self individual. Isso leva o ego a um conflito
fundamental.”
Esta dinâmica se repete muitas e muitas vezes e em cada “encarnação”
do Self, num arquétipo, apresenta-se ao ego com um valor divino.
Porém, em cada mudança de fase, o ego necessita matar aquele aspecto
deificado anteriormente e voltar-se para um novo deus. Esta
atividade gera ansiedade, segundo Neumann o “sentimento de culpa e
sofrimento porque, do ponto de vista da manifestação mais antiga do
sagrado, a manifestação do estágio superior seguinte do Self é
perigosa e pecaminosa.”
O ego aprende como se desfazer de valores supremos e das
identificações, embora de maneira sofrida.
Considerando estas características do desenvolvimento, notamos que
se faz necessário um ego fortalecido para suportar o sofrimento,
como também, coragem para cometer um “deicídio”. Se o ego não tem
uma base sólida, construída na base do Eros, jamais poderá completar
os estágios do desenvolvimento e ficará fixado numa base anterior,
na constelação de um complexo. Para Neumann a base do
desenvolvimento humano saudável encontra-se na relação primal, diz
ele: “A relação pessoal posterior da criança com a mãe, como base de
toda relação amorosa subseqüente, e na verdade de toda relação
humana, se estabelece de acordo com a relação primal. Só o
inquestionável senso de segurança conferido pela proteção no amor de
uma mãe, que capacita a criança em desenvolvimento a suportar
desagradáveis tensões durante o processo de diferenciação, pode
deixá-la apta para suportar a redução do automorfismo infantil,
imposto inevitavelmente pelo processo de crescimento no mundo e na
sociedade. Só através da experiência de que o desconforto
seguir-se-á um alívio proporcionado por compensação e apaziguamento
trazidos pela intervenção da Mãe Boa, é que a criança vai adquirir a
habilidade, tão necessária para o homem e tão característica do
homem,...”
Vanilde Gerolim Portillo - Psicóloga Clínica - Pós-Graduada e
Especialista Junguiana - Atende em seu consultório em São Paulo:
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