Não se desculpe
Por Bruno Soalheiro
21/03/2007
Não se desculpe! Disse-me em voz alta o professor. Deu-me nas veias
de querer joga-lo porta afora. Dera-me um trabalho gigante, em
inglês, que eu falava bem, mas nem tão bem assim, fizera-me ficar
debruçado naqueles mosaicos intermináveis de números e gráficos, e
quando chego eu, com desespero e angústia, queixando-me de mil
dificuldades e tentando em nome de qualquer coisa explicar ao
indivíduo que estava muuuuito difícil, o que ouço? Não se desculpe!
Mal educado; não nego. Pois não só não me desculpei como emburrei.
Mas fazer o que? Era monografia e eu já estava pelo meio da coisa;
já o ano letivo estava pelo fim. Emburrado que estava guardei no
estômago (não me perguntem porque no estômago), meia dúzia de pragas
que iria dizer e voltei para casa naquela indigestão.
Disse Bill Gates (conhecem?), “O mundo espera que você faça algo por
ele antes mesmo de se sentir bem consigo”. Profeta? Filósofo? Não.
Multimilionário! Fui-me embora com Bill Gates na cabeça e as pragas
no estômago.
Chegando em casa a realidade. Tinha que fazer o bendito trabalho de
qualquer jeito, e toda vez que vinha a revolta à cabeça eu achava
algum empecilho e me lembrava: Não se desculpe! Ficava mais
revoltado.
Fui fazendo, fui xingando; um copo de suco aqui, uma dor no pescoço
ali. Não se desculpe! E mão na massa. Estava difícil. Não se
desculpe! A dizer a verdade, fiz o trabalho todo daquele dia ouvindo
esta pérola dita numa tremenda falta de educação, consideração e
respeito aos meus limites como simples aluno, (simples?). Fui
xingando, fui fazendo, fui terminando. Acabado o troço, voltei lá.
Já havia, (não sei como até hoje), resolvido grande parte dos
pepinos que até três horas antes julgava impossíveis de serem
resolvidos. Talvez de raiva.
Já viram alguma pesquisa em Análise Experimental do Comportamento,
que lida com inúmeros sujeitos, múltiplos esquemas de resposta, e se
encontra escrita no mais belo e simples inglês acadêmico? No início
é a mesma sensação de se assistir ao pregão da bolsa de valores aos
oito anos de idade. Não se desculpe! Mal ou bem, tinha eu feito a
coisa e ali estava de novo esperando nova grosseria. Pois mostrei ao
homem e esperei.
Perfeito! Eis o que ouvi. Pensei comigo: É doido! Mas fazer o que?
Era um “perfeito” que eu acabara de ganhar apenas três horas depois
de receber um: Não se desculpe! Olhava-me agora sem aquela expressão
repreensiva; diria até que queria me dar um abraço.
Pois sim, entregue a coisa, pus eu o perfeito no bolso, dei meia
volta e saí andando. Antes de ir embora tomei o rumo da cantina da
faculdade, comprei um suco de acerola e me coloquei a observar o sol
que se deitava ao longe. O “Não se desculpe” no estômago, misturado
agora ao suco de acerola, e o “perfeito no bolso”. Na cabeça e no
peito, uma sensação esquisita.
Até hoje me lembro que cinco dias depois tive de defender meu
projeto na banca. E lá estava ele, o “Sr Não se desculpe”. Para
minha surpresa, naquele dia só ganhei perfeitos, inclusive dos
outros dois da banca (talvez tivessem combinado). Tirei dez! Já o
Sr, “Não se desculpe” fez questão de salientar que era “10 com
louvor”.
Saí dali embriagado. Havia feito um trabalho extremamente complexo e
rico, numa língua estrangeira que dominava apenas parcialmente, sem
a mínima experiência em qualquer projeto de pesquisa, e tirado nota
máxima com louvor.
Professor João Carlos, o nome dele. O homem que num gesto ríspido
inflamou minha revolta, empurrou-me para o impossível, condenou-me
sem piedade ao irrealizável, e ajudou a forjar o meu caráter!
Curioso é que levei alguns meses para entender a estranheza em meu
peito aquele dia na cantina. O misto de angústia e insegurança e ao
mesmo tempo o prazer que eu experimentara no dia do “Não se
desculpe” que em pouco tempo virou um “Perfeito”.
Se fizera isso propositalmente não sei. Nem nunca perguntei, mas
acho que sim; deu –me um talho na alma a fim de moldar a atitude que
queria em mim. Desde então em muitas coisas eu cresci. Aprendi num
susto aquele dia que eu era capaz de realizar infinitamente mais do
que sequer poderia conceber, e num período bem curto.
Sim. Lembro-me sempre do professor João Carlos, com seu jeito
exigente de encher a cabeça da gente com muito mais caraminholas do
que podemos (ou pensamos que podemos) agüentar. E sei também que o
que me dá mais prazer recordar não são os bons momentos ou as vezes
em que recebi generosamente todos os perfeitos e louvores. Gosto
mesmo é de lembrar daquela tarde enervante e quente em que eu
chegara desesperado por um “encosto” qualquer e ouvira a curta
sentença que até hoje me acompanha e me faz crescer na vida: “Não se
desculpe!”
Bruno Soalheiro é Psicólogo, palestrante e consultor em
desenvolvimento humano.