Fliess (O conceito de bissexualidade e suas influências na obra de
Freud)
Por Márcia Vasconcellos de Lima e Silva
04/09/2007
Serge Andre, começa o capítulo 1 de seu livro O que quer uma
mulher?, indagando: "O que assegura a pertinência da intervenção do
psicanalista? É - Lacan nos diz - um saber posto em posição de
verdade". Era precisamente isso que ocorria na relação
Freud/Fliess=analista, a nível transferencial. A relação começa a
desmoronar quando Freud começa a não mais confiar cegamente em
Fliess. Quando começa a se instaurar o processo de desidealização
com relação a Fliess. Queda gradativa da transferência; queda
gradativa do sujeito suposto saber...
Desde as primeiras cartas entre Freud e Fliess até os últimos textos
inacabados, a questão da feminilidade se destaca na obra freudiana,
enquanto enigma e mistério, em abordagens sucessivas e diferentes. O
autor propõe, então, distinguir 4 grandes temáticas que parecem
guiar Freud ao longo desse percurso. Trata-se de 4 grandes
interrogações em torno de um significante-chave, cuja significação
fica, para Freud, sem elucidação.
· a noção de bissexualidade - que constitui o significante original
da obra freudiana, através do qual a relação Freud/Fliess é
estabelecida e desmorona-se, mas que vai deixar marcas indeléveis na
construção e desconstrução da obra freudiana.
· o conceito de libido - este termo aparece pela 1a. vez, no
rascunho E (1894) da correspondência entre Freud/Fliess. A idéia de
que só há uma libido não permite colocar uma diferença entre os
sexos. Freud, ao postular na 1a. redação de seu artigo Três
Ensaios... que só havia uma única libido, de essência masculina, que
aparece no auto-erotismo da 1a. infância, " (...) deve imediatamente
enfrentar essa questão: o que se passa a partir daí no caso da
menina, e mais tarde, da mulher? Assim, é levado a sustentar que a
sexualidade da menina é fundamentalmente masculina, e localizada no
clitóris - que constitui o equivalente da glande masculina. Esta
sexualidade masculina deverá mais tarde ser recalcada, a fim de que
a menina se transforme em mulher, e de que a zona erógena condutora
se desloque do clitóris para a vagina" (Andre, 1986: 20 - grifos
nossos).
* Disciplina: Gênese da Psicanálise
Prof: Gloria Seddon
1º período - 01/99
· da diferença dos sexos à divisão do sujeito - " Freud constata que
a diferença de órgãos apresentada pela anatomia do corpo humano não
se significa, ao nível do inconsciente, como uma divisão entre dois
sexos. Assim, a partir da recusa primordial da noção fliessiana de
bissexualidade, Freud chegará - em vez de se apoiar numa clivagem
entre dois sexos - a inscrever a divisão que se introduz, com a
sexualidade, no Ich, no próprio sujeito do inconsciente" (André,
1986: 22 - grifos nossos).
· o tornar-se mulher - "(...) se não há sexo feminino enunciável
como tal, a feminilidade não pode ser concebida como um ser que
seria dado desde o início, mas como um se tornar - e um se tornar
que, paradoxalmente, se inaugura para a menina a partir de seu
complexo de masculinidade" (André, 1986: 24).
Quando Freud afirma que só há uma libido para homens e mulheres -
não há libido especificamente feminina - Freud recoloca o problema
da divisão: embora se trate da mesma libido para homens e mulheres
(libido bissexual?), ela se cinde conforme o modelo de satisfação
(ativo/passivo) e com seu objeto (libido objetal/libido do ego).
Lacan, por sua vez, recoloca a questão da libido feminina, puxando-a
para o lado do gozo: haverá um gozo próprio à mulher? E cria, então,
um movimento que desloca a questão da feminilidade do campo do sexo
para o campo do gozo: a bissexualidade se torna bi-gozo. O problema
que daí decorre reside em saber se há um gozo a mais além do gozo
masculino. O bi-gozo que divide a libido acarreta também uma divisão
do sujeito em duas partes: uma toda fálica e outra não-toda.
" Enfim, quando Lacan enuncia que a mulher não existe, não seria
esta uma forma de retomar a tese freudiana segundo a qual a
feminilidade não é um ser, mas um se tornar?" (André, 1986: 26-27
grifos nossos).
A relação Freud/Fliess:
Fliess foi o único interlocutor que Freud encontrou e que não se
assustou ou afastou devido às ousadas descobertas de Freud. Muito
pelo contrário, sempre dava-lhe o apoio necessário quando Freud
precisava. A relação dos dois durou 8 anos (1887-1895). A partir de
1895 Fliess não mais respondeu as cartas de Freud, embora este
continuasse a escrever para ele até 1904.
Ao contrário de Breuer, Fliess acreditava na etiologia sexual na
causalidade dos sintomas histéricos. Em algumas das primeiras
cartas, Freud escreve a Fliess relatando a importância de fatores
sexuais na etiologia das doenças nervosas de seus pacientes...
Fliess, por sua vez, além de influenciar Freud a partir de suas
concepções acerca da diferenciação biológica como algo suficiente
para a determinação dos sexos, beneficiou-se da escuta de Freud
sendo, assim, estimulado à produção de suas próprias teorias. Houve
uma relação de troca entre ambos.
"No ponto de origem da elaboração freudiana referente à mulher está,
pois, o significante bissexualidade. Mas esse termo não assume seu
verdadeiro alcance - de fascínio e rejeição ao mesmo tempo - senão
no contexto em que Freud é levado a medir-se com ele, ou seja, nesse
drama inicial da Psicanálise que se desenrola na relação entre Freud
e seu amigo Fliess". Relação marcada pela exclusão das mulheres -
suas respectivas esposas (Andre, 1986: 32).
O encontro casual - Freud e Fliess encontraram-se fortuitamente.
Breuer aconselhou a Fliess, rinolaringologista de Berlim, que
freqüentasse os cursos de neurologia de Freud. Assim, começa o que
Jones considera ter sido "(...) a única experiência realmente
extraordinária ocorrida em toda a vida de Freud" (Jones, 1961:290).
A teoria de Fliess. Fliess construiu sua teoria baseando-se no
conceito de bissexualidade. Segundo sua teoria, cada um dos sexos
contém de forma recalcada o outro. "A mulher possuía o lado
masculino recalcado, enquanto o homem possuía o lado feminino
recalcado" (André, 1986: 32-38).
Em linhas gerais pode-se dizer que Fliess, na construção de sua
teoria, pretendia demonstrar o fundamento bissexual de todo ser
humano, generalizando a concepção de menstruação, menstrual a tudo
que se refere a períodos. Assim, homens, mulheres e até animais e
plantas seriam dominados pela menstruação. Foi mais além e disse que
"a mãe é quem transmite seus períodos à criança, determinando o sexo
numa relação de co-vibração natural, em que não há a intervenção de
terceiros - pai. Desta forma ele explica desde a causa dos sintomas
até a determinação dos sexos, sendo a origem de tudo, a mãe"
(Seddon, 1998:44). Definindo, então, um princípio universal para a
criação do mundo.
"Serge André alerta para o fato de que fliessen significa fluir,
desta forma, o autor teria colocado seu nome como o próprio nome
[Fliess] da lei que regula o universo, ou melhor ainda, a causa"
(Seddon, 1998:44).
A submissão de Freud a Fliess... Jones considera insólita a
idolatria que Freud sentia por Fliess, a ponto de se deixar submeter
àquele homem de forma tão inusitada, tão desprendida, tratando-o
como se Fliess fosse o messias. Freud passou a "(...) sustentar uma
amizade apaixonada com alguém que lhe é intelectualmente inferior e
subordinar, durante anos a fio, seus juízos e opiniões aos desse
homem" (Jones, 1961: 290 - grifos nossos).
A gradativa e relativa autonomia de Freud em relação a Fliess. Freud
começa sua auto-análise... críticas a Fliess - A partir do malfadado
episódio da operação de nariz de sua paciente Emma, Freud parece ter
sofrido um baque de consequências bastante graves com relação a
Fliess. Mesmo não querendo aceitar ou acreditar no erro do amigo,
chegando inclusive, a se culpar pelo acontecido, o fato é que a
relação sofreu um abalo que Freud não mais conseguiu superar ou
disfarçar. O doloroso processo de desvalorização havia começado. E
com ele, o subsequente processo de libertação e autonomia com
relação, no caso, a Fliess.
"Conscientemente Freud ainda confia totalmente em Fliess mas,
analisando as cartas que ele envia para Fliess, é possível
demonstrar que Freud tinha superado Fliess. Na auto-análise dos
sonhos, Freud estava se autorizando analista. Por exemplo, Freud
relata a Fliess que está tratando dos sintomas neuróticos de Emma,
com bons resultados, o que de certa forma significa dizer que Fliess
está enganado com respeito as suas teorias. Afinal, a solução
cirúrgica de Fliess não tinha resolvido os problemas de Emma"
(Seddon, 1998:47).
Em carta posterior, lê-se: "Fico realmente muito abalado ao pensar
que um desastre desses tenha decorrido de uma operação supostamente
inócua" (Masson, 1985:125 - grifos nossos). Ora, Freud critica
Fliess sem se dar conta disso.
"Fliess fazia as vezes de analista, enquanto objeto causa de desejo
para Freud. Se Freud começou sua análise com Fliess, colocando este
no lugar do Messias, isto é, no lugar do Sujeito Suposto a Saber,
depois do caso Emma, Freud o destitui de todos os poderes
pretendendo que ele apenas o lesse ou o escutasse. Freud o colocou,
não conscientemente, como vimos nos questionamentos que lhe faz, no
lugar de um resto que lhe servia para continuar sua análise. A
partir dos enganos de Fliess, Freud fica livre para acreditar nas
suas próprias idéias novas que estão surgindo através da
auto-análise que está em andamento, mesmo que de forma não assumida
ainda" (Seddon, 1998:47-48 - grifos nossos).
"Em 1899, Freud escreve a Fliess parabenizando-o pela chegada do
segundo filho homem, numa carta que é uma resposta à paranóia de
Fliess, já que é um elogio ao Pai " (Seddon, 1998: 74).
Enfim, "o conceito de bissexualidade que deu origem à relação, vai
também pôr fim à mesma. Fliess questiona Freud por ter lhe roubado a
idéia de bissexualidade para dá-la a outro. Esse outro era
Weininger, amante de um aluno ou paciente de Freud. Surge aqui um
sentimento de ser traído com outro, este outro homossexual" (Seddon,
1998: 74).
A correspondência de Freud para Fliess além de conter vários
trabalhos muito importantes para o estudo da teoria psicanalítica, é
bastante interessante uma vez que mostra os impasses de Freud com
sua própria feminilidade...
Influências do Conceito da Bissexualidade na obra de Freud:
1- Carta 52 (Viena, 06 de Dezembro de 1896): "A fim de explicar por
que o resultado [da experiência sexual prematura] às vezes é a
perversão e, às vezes, a neurose, valho-me da bissexualidade de
todos os seres humanos" (Freud, 1895: 286 - grifos nossos).
2- O recurso à bissexualidade, capítulo 1 de "Os três ensaios...". A
respeito do hermafroditismo, Freud coloca: "A concepção resultante
desses fatos anatômicos conhecidos de longa data é a de uma
predisposição originariamente bissexual, que, no curso do
desenvolvimento, vai-se transformando em monossexualidade, com
resíduos ínfimos do sexo atrofiado" (Freud, 1905: 134 - grifos
nossos). Na nota de rodapé referente a esse mesmo assunto,
encontramos: "O reconhecimento da importância da bissexualidade pelo
próprio Freud muito se deveu a Fliess (...) Contudo, ele não
aceitava a visão de Fliess de que a bissexualidade forneceria a
explicação do recalcamento" (Freud, 1905: 136).
3- Na nota do editor do artigo História de uma neurose infantil
(1918 [1914 ]), encontramos: "Talvez a principal descoberta clínica
seja a de revelar a evidência do papel determinante desempenhado na
neurose do paciente pelos seus impulsos femininos primários. Seu
marcado grau de bissexualidade era apenas a confirmação de pontos de
vista há muito defendidos por Freud, que datavam da época de sua
amizade com Fliess. Nos seus escritos subsequentes, porém, Freud deu
ainda mais ênfase ao fato da ocorrência universal da bissexualidade
e da existência de um complexo de Édipo 'invertido' ou 'negativo'
(...) Por outro lado, resiste com veemência a uma tentativa de
inferência teórica no sentido de que os motivos relacionados com a
bissexualidade são os determinantes invariáveis do recalque" (Freud,
1918: 18 - grifos nossos).
No último capítulo desse artigo, intitulado Recapitulação e
problemas, Freud fala em introduzir uma ligeira alteração na teoria
psicanalítica. E nos diz: "Parecia palpavelmente óbvio que o
recalque e a formação da neurose haviam-se originado do conflito
entre as tendências masculina e feminina, ou seja, da
bissexualidade. Essa visão da situação, no entanto, é incompleta
(...) Insistir que a bissexualidade é a força motivadora que leva ao
recalque é assumir uma visão por demais estreita" (Freud, 1918:
116-117 - grifos nossos).
4-No artigo Uma criança é espancada (1919) em suas últimas páginas
(214 e segs.), Freud coloca-se contra a teoria de Fliess quanto à
constituição bissexual dos seres humanos e a questão do recalque
acontecer na parte que pertence ao sexo oposto.
5- No artigo A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher
(1920), Freud assim se expressa: "(...) sua última escolha
correspondia não só ao ideal feminino, como também ao masculino;
combinava a satisfação da tendência homossexual com a tendência
heterossexual. É bem sabido que a análise de homossexuais masculinos
em numerosos casos revelou a mesma combinação, o que deveria nos
alertar contra formarmos uma concepção demasiado simples da natureza
e gênese da inversão e mantermos em mente a bissexualidade universal
dos seres humanos"(Freud, 1920: 168 - grifos nossos).
Freud fará ainda várias referências à questão da bissexualidade em
diversos artigos, tais como, Sexualidade feminina (1931); na
conferência XXXIII sobre Feminilidade (1932); e outros.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
André, Serge (1986). O que quer uma mulher? Jorge Zahar, Rio de
Janeiro, 1987. p. 9-45.
Jones, Ernest (1927). Vida e obra de Sigmund Freud. Jorge Zahar, Rio
de Janeiro, 1979. p. 290.
Masson, J.M. (1985). A correspondência completa de Sigmund Freud
para Wilhelm Fliess (1887-1904). Imago, Rio de Janeiro, 1986. p.
165.
Seddon, Gloria (1998). A Feminização da Psicanálise. Tese de
Doutorado. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro - PUC-RJ. p. 42-48; 72-87.