A Ética do Cuidado em Saúde na Prática do Psicólogo Acupunturista
			Por Susi Maria Salvador Chaves
			22/03/2010
			
			
			Universidade Federal Fluminense – UFF
			Instituto de Saúde da Comunidade – CMS
			Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – PPGSC
			Professores: Dimas Ribeiro e Valéria Ramos
			Aluna: Susi Maria Salvador Chaves
			
			
			O objetivo desse trabalho é abordar questões de bioética e 
			biopolítica envolvidas na prática do cuidado em saúde do psicólogo 
			acupunturista.
			Num primeiro momento, como quem vai desbravando um território novo, 
			proponho um reconhecimento da área, ou seja, um referenciamento dos 
			conceitos a serem utilizados. Como nos fala Leonardo Boff, “ Todo 
			ponto de vista é a vista de um ponto”, mostraremos então “o ponto de 
			nossa vista” . Michael Foucault, considera como ética o modo do 
			indivíduo relacionar-se consigo mesmo (2005). Um processo de 
			reflexão sobre valores construídos socialmente e vivenciados sob as 
			diferentes formas de poder presentes nos fenômenos de dominação em 
			qualquer forma com que eles se apresentem: na política, na economia, 
			na sexualidade, na instituição. O autor denomina governabilidade “ao 
			conjunto das práticas pelas quais é possível constituir, definir, 
			organizar, instrumentalizar as estratégias que os indivíduos, em sua 
			liberdade, podem ter uns em relação com os outros.”
			É então á partir do conceito de governabilidade que vamos discutir a 
			ética, sendo esta a forma como o indivíduo manifesta sua liberdade 
			em relação a si mesmo e na relação com o outro. “...a noção de 
			governabilidade permite, acredito, fazer valer a liberdade do 
			sujeito e a relação com os outros, ou seja, o que constitui a 
			própria matéria da ética.” (p.286)
			A Bioética vem associar tais reflexões ao fenômeno da vida 
			biológica, traz um juízo crítico sobre valores e condições para a 
			vida humana. Como a liberdade do profissional de saúde se manifesta 
			no trabalho vivo em ato ao governar a si mesmo e ao interagir com o 
			outro no momento de encontro com o usuário nos serviços de saúde.
			Em nosso caso específico vamos percorrer o caminho da Acupuntura e 
			como o profissional de saúde, aluno de Pós Graduação em Acupuntura, 
			vai se deparando com essas questões no dia a dia de um ambulatório 
			de atendimento e como o professor supervisor pode atuar como 
			propulsor nessa formação.
			Já Biopolítica, pode ser definida como a prática de relacionamentos 
			entre os poderes que envolvem o campo da vida biológica humana. 
			Segundo Foucault, as relações de poder estão presentes em todas as 
			relações humanas. A forma como o poder se manifesta foi se 
			diferenciando histórica e socialmente de maneira visível, sob forma 
			de leis, ou de maneira invisível, sob forma de coersão. Segundo 
			Baremblit (2002), o poder relacional é aquela forma de poder que se 
			mantém na dinâmica das relações, instituindo e sendo instituinte de 
			diferentes modos de agir.
			Por instituído podemos entender como o que está posto, estabelecido. 
			Instituinte é tudo aquilo que escapa, que foge ao pré-estabelecido. 
			Não há,pois, nenhum juízo crítico de valor a algumas das formas, 
			sejam instituintes ou instituídos, e também não há uma relação de 
			permanência entre esses eles. O que hoje vem se mostrando como 
			instituinte poderá estar instituído em outro momento, ou em outro 
			lugar.
			No recorte proposto aqui, a acupuntura como prática de cuidado em 
			saúde no Ocidente esteve como instituinte e hoje está instituída 
			pela Organização Mundial de Saúde como prática complementar a ser 
			praticada pelos profissionais de saúde de diferentes áreas de 
			formação. Há porém, um outro movimento de poder instituinte que vem 
			buscando instituir a prática de acupuntura apenas para profissionais 
			médicos. Esse porém, não será o foco proposto nesse momento. 
			Pretendemos discutir a forma como os diferentes poderes se 
			manifestam nas relações entre os profissionais e os usuários no 
			ambulatório de atendimento em acupuntura. Seja sob forma de poder de 
			soberania, aquele em que o indivíduo está submisso ao soberano e 
			cabe a ele a decisão do fazer viver ou deixar morrer , ou seja sob 
			forma do poder disciplinar, em que o corpo que atende à demanda 
			socialmente criada tem um valor, ou ainda, sob forma de biopoder, 
			controlando reprodução, fecundidade, longevidade. (Foucault,2005).
			Como referenciais de análise do trabalho em saúde, os termos 
			Bioética e Biopolítica se mostraram como conceitos intercessores, ou 
			seja, segundo Deleuze, produziram um efeito de desestabilização, de 
			perturbação pelo que ocorre “entre” (pacientes, profissionais, 
			alunos, professores). Atuando como professora supervisora no 
			ambulatório de acupuntura da Pestalozzi, ao refletir sobre tais 
			conceitos percebi uma certa inquietude que gerava insatisfação e ao 
			mesmo tempo motivação para a continuidade. Uma estranheza precisava 
			ser aprendida. Aceitar a incompletude da “razão” , perceber e 
			ensinar que política não é sinônimo de coersão e que ética é mais 
			reflexão do que normatização.
			A acupuntura é uma prática milenar que se constituiu sobre um outro 
			tipo de racionalidade, o pensamento oriental, e quando ela se 
			ocidentaliza, enfrenta riscos e embates a todo instante. 
			Profissionais em saúde formando-se acupunturistas. Profissionais de 
			diferentes áreas mas que foram formados por uma mesma lógica 
			biomédica hegemônica.
			Uma lógica que prioriza o imediatismo e o poder soberano. Que tipo 
			de juízo crítico estes profissionais ocidentais vão formando para 
			atuar em acupuntura? Como utilizar desta ferramenta em saúde que 
			privilegia a prevenção, por exemplo, ao tratar pacientes com 
			patologias crônicas ? Procedimentos para melhorar o processo 
			digestivo de pacientes que resistem a mudar hábitos alimentares. 
			Estaremos “cuidando” para que continue seu mau hábito ? 
			Procedimentos para melhorar a libido em mulheres cujo marido está 
			impotente. Será incentivo para aumentar a insatisfação? 
			Potencializar a sexualidade em um paciente compulsivo por sexo ? São 
			algumas das questões que surgem rotineiramente no ambulatório de 
			acupuntura e precisam fazer parte das discussões de supervisão, além 
			do ensinamento técnico da prática de acupuntura, é necessário pensar 
			na ética desse profissional que estamos formando.
			A prática do cuidado em saúde é influenciada pelas normas 
			estabelecidas dentro de limites bem restritos. Quem decide o modo de 
			fazer o cuidado é o próprio trabalhador em ato, no seu processo de 
			trabalho. É no encontro que a relação se estabelece e se delineia, 
			partindo como referenciais a ética, a liberdade de governar a si 
			mesmo e a relação com o outro. É um cenário amplo e de uma dinâmica 
			relacional onde o controle pelo que está instituído fica á margem de 
			movimentos que vão se instituindo a todo instante. O trabalho vivo 
			em ato é a expressão máxima da liberdade do trabalhador, podendo 
			esse ser capturado pelas formas hegemônicas de agir, sendo 
			reprodutor de um modelo, ou escapando a essas formas, sendo inovador 
			e gerenciador de sua própria forma de cuidar.
			No cuidado em saúde através da acupuntura tal processo não se 
			diferencia. O acupunturista, ao deparar-se com o corpo do paciente e 
			sua dor, tem a possibilidade de atuar no sentido de mediar a 
			interlocução do sujeito com o seu corpo, e reconstruir com ele, 
			através do sofrimento, sua capacidade de manter, intervir e 
			transformar, de forma autônoma e socialmente compartilhada, a 
			própria vida e o meio em que vive. Ou então, simplesmente, oferecer 
			a ele a “cura” de seu mal, exercendo sobre ele o poder que lhe é 
			outorgado pelo próprio paciente.
			Pensamos porém que a acupuntura é uma ferramenta de cuidado em saúde 
			que traz a possibilidade de recuperar no sujeito o simbólico de sua 
			dor, transpondo a maneira narcísica com a qual a subjetividade 
			moderna se inscreve. O campo da saúde hoje é atravessado por forças 
			que seduzem e capturam os sujeitos, que se “asujeitam” por meio de 
			seu próprio corpo ( procedimentos que utilizam a tecnologia para 
			melhorar o desempenho do corpo biológico, ou até mesmo para 
			substituir esse corpo) ou da ação, atitudes impulsivas que são os 
			registros por excelência de seu mal estar (manifestações 
			comportamentais que vêm emergindo de maneira alarmante na 
			sociedade).
			A Filosofia chinesa parte do pressuposto de que corpo/mente/emoção 
			são manifestações de uma mesma substância em diferentes graus de 
			materialidade. Não há o dualismo psicofísico que há no pensamento 
			ocidental. Esta substância é o Qi, energia vital, o que se poderia 
			comparar com o conceito de libido em Jung, “energia psíquica 
			presente em tudo o que tende a”. A acupuntura atua no Qi através do 
			corpo, pretendendo-se que seja avaliado em função da organização 
			estabelecida entre os elementos que o compõe (Água, Madeira, 
			Fogo,Terra,Metal). A saúde está no equilíbrio do movimento de Qi 
			entre esses elementos, sendo manifestada pela ausência de queixas, 
			sem diferenciar caso sejam de ordem corporal ou emocional. O corpo é 
			tido como um microcosmo, regido pelas mesmas leis do macrocosmo. 
			Cada um dos pontos de acupuntura foi concebido em sua função e 
			efeito abrangendo os três níveis do indivíduo. Os meridianos, 
			caminhos por onde circula o Qi, percorrem todo o corpo e foram 
			estabelecidos como metáforas do relevo da China, ou de acordo com a 
			função equivalente na história social deste país. Existe por exemplo 
			o ponto do meridiano da Vesícula Biliar,o VB 39, que em chinês ( 
			Xuanzhong) significa Sino Suspenso. Nos tempos antigos crianças 
			usavam uma faixa nesse local com um sino pendurado e uma das funções 
			do ponto é revitalização, nutrição da medula, que na acupuntura é o 
			substrato para a formação do cérebro. Temos que lembrar que o código 
			de linguagem chinês é um registro simbólico e não de signos como a 
			linguagem ocidental. Por exemplo, a palavra Terra é escrita desta 
			forma, composto por duas linhas horizontais e uma vertical. A linha 
			horizontal de cima representa o solo superficial e a segunda linha o 
			subsolo. A linha vertical representa todas as coisas que são 
			produzidas pela terra. Assim o caractere representa as duas 
			qualidades principais da Terra: nutrição e estabilidade. Na 
			acupuntura, Estômago e Baço-Pâncreas compõem esse elemento e suas 
			patologias estão relacionadas ao sistema digestivo e também a 
			digerir ,transformar e assimilar emoções e pensamento, como nos 
			processos mentais de aprendizagem ou preocupação.
			Temos então um modelo de cuidado em saúde que se estrutura num corpo 
			simbólico e que interfere neste corpo através de estímulos em 
			determinados pontos selecionados para que este restabeleça o 
			equilíbrio e deixe de manifestar o sintoma – físico ou psíquico.
			Como supervisora de alunos profissionais em saúde num ambulatório 
			escola em acupuntura, atendemos um número que gira em torno de 30 
			pacientes por dia que realizam seus tratamentos de lombalgia, 
			cervicalgia, gonalgia, e muitas outras algias de corpo e também 
			pacientes que chegam com queixas psíquicas como estresse, insônia, 
			tensão pré-menstrual, depressão, esquizofrenia, transtorno bipolar, 
			fibromialgia. Particularmente desenvolvo uma pesquisa de acupuntura 
			no tratamento de crianças hiperativas , com distúrbios de 
			aprendizagem, psicóticas e com comprometimentos neurológicos.
			O indivíduo quando chega até nós, traz em si uma demanda de saúde, 
			como se nós,profissionais, fôssemos dotados de um poder (o que antes 
			era dado a um soberano e neste momento é repassado para nós) capaz 
			de solucionar a dor que ele não suporta mas que julga-se incapaz de 
			resolver.
			Acontece que a acupuntura geralmente não é o primeiro recurso a ser 
			procurado aqui em nossa sociedade. Muitos pacientes vêm porque já 
			tentaram de tudo....e então os médicos recomendam a acupuntura; 
			outros chegam para diminuir a quantidade de medicamentos para dor ou 
			para o sono, já que a acupuntura é reconhecidamente eficaz no 
			tratamento da dor e da insônia ou do estresse. Muitos têm medo de 
			agulha, e há ainda alguns que fazem tratamento há 1 ou 2 anos porque 
			se sentem muito bem mas suas dores voltam quando param a aplicação. 
			Porém há também no ambulatório alguns diferentes casos, que escapam 
			ao padrão de algias clássico, como: crianças tratando enurese; 
			mulheres tratando sintomas de tensão pré-menstrual; mulheres 
			tratando infertilidade, homens tratando impotência; tabagismo; 
			obesidade .
			Ocorrem casos em que pacientes buscam o tratamento apenas como 
			prevenção de doenças, ou para evitar aumento do grau de miopia, 
			ajudar no controle hormonal durante a menopausa, diminuir os 
			tremores do Parkinson, melhorar a memória nos idosos e mesmo a 
			performance nos estudos. Observamos também que alguns pacientes 
			chegam por queixas bem definidas em algias no corpo, e, quando estas 
			são resolvidas, passam a ter queixas emocionais, como ansiedade , 
			irritabilidade ou depressão.
			Ora, sendo a acupuntura reconhecida pelo Conselho Federal de 
			Psicologia desde maio de 2002, podemos refletir um pouco sobre a 
			concepção de corpo a que estamos nos referindo e a que tipo de 
			cuidado em saúde o Psicólogo Acupunturista se propõe.
			A dicotomia corpo-alma sempre esteve presente no pensamento dos 
			filósofos ocidentais. A essa diferença e separação em partes 
			material(corpo) e espiritual(alma) é conhecida como dualismo 
			psicofísico, ou seja, a dupla realidade da consciência separada do 
			corpo.
			Já no pensamento grego, no século V a.C., com Platão, essa dicotomia 
			se fazia presente. Para ele, a alma antes de se encarnar, teria 
			vivido no mundo das idéias, onde tudo conheceu de maneira intuitiva, 
			sem precisar usar os sentidos. A alma se une ao corpo por 
			necessidade natural ou expiação de culpa, tornando-se então, 
			prisioneiro dele. A alma humana passa a se compor de duas partes: 
			uma superior – a alma intelectiva – e outra inferior – a alma do 
			corpo - .essa alma inferior acha-se ainda dividida em duas: a 
			irascível, impulsiva, localizada no peito e a concupiscível, 
			centrada no ventre e voltada para os desejos de bens materiais e 
			apetite sexual.
			Para Platão o conhecimento verdadeiro está na alma superior e todo o 
			drama humano consiste na tentativa de domínio da alma superior sobre 
			a inferior. Se a alma superior não conseguir controlar as paixões e 
			os desejos – o que é sensível, escraviza, conduz à opinião e 
			perturba o conhecimento verdadeiro – o homem torna-se incapaz de 
			comportamento humano adequado. “Corpo são em mente sã.” , célebre 
			frase de Platão, referindo-se que o corpo saudável, de posse da 
			saúde perfeita, permite que a alma se desprenda dos sentidos para 
			melhor se concentrar na contemplação das idéias. Dessa maneira, a 
			fraqueza física impede a vida superior de espírito. Não é por acaso 
			que a Grécia é o berço das olimpíadas, origem da valorização dos 
			esportes, ginástica e exercícios físicos, prática porém justificada 
			para manter a superioridade do espírito sobre o corpo.
			Esta prática de exercícios físicos, que no início era tida apenas 
			para o treinamento de atletas, adquire o sentido de disciplina 
			espiritual de auto-controle. Com o advento do cristianismo, passa a 
			significar o controle dos desejos pela renúncia aos prazeres do 
			corpo, o que podia ser feito através de jejum, abstinência e 
			flagelações, por exemplo com a prática de chicotear o próprio corpo. 
			Tais comportamentos se baseiam na interpretação dos pensamentos 
			racionais do pensamento de Platão, partindo do princípio de que o 
			corpo é sinal de pecado e degradação – ascetismo. Ascede em grego 
			significa “exercício” – o que de início era apenas exercício passou 
			a ter cunho de poder pelo auto-controle.
			Santo Agostinho ( 354 – 430 d.C.) busca inspiração no neoplatonismo, 
			encaminhando-se para a conversão ao cristianismo e posteriormente 
			elabora a grande síntese teológica cuja influência será decisiva na 
			transição do final da Antiguidade para a Alta Idade Média. 
			Interpreta corpo-alma como uma unidade. O corpo é a dimensão terrena 
			e mortal da alma imortal. A alma pode governar o corpo através do 
			livre-arbítrio e auxílio da graça divina. Porém, exatamente por ser 
			livre, o homem pode eleger o mal e pecar. Pecado é a transgressão 
			intencional de um mandamento divino – dizer, fazer ou desejar algo 
			que seja contrário à lei eterna. Mantém assim o drama humano como o 
			esforço contínuo contra o desejo intenso de bens ou gozos materiais, 
			inclusive o apetite sexual.
			Temos então que na Idade Média o corpo era considerado inferior mas 
			era também considerado criação divina, mantendo um certo grau de 
			sacralidade. No Renascimento a noção de corpo começou a mudar. A 
			Igreja impediu essa mudança enquanto pôde. Por exemplo, a dissecação 
			de cadáveres era considerado sacrilégio por tentar desvendar o que 
			Deus teria ocultado de nosso olhar. Houve porém a quem o controle da 
			igreja não pôde impedir de avançar. Podemos citar Leonardo Da Vinci 
			(Séc. XV) e Versalius (Séc. XVI) que ousaram desafiar a tradição e 
			contribuíram para novas concepções de anatomia.
			Esse outro lado “profano” pode ser compreendido na perspectiva da 
			revolução científica promovida por Bacon,Descartes e Galileu. O 
			corpo passa a ser objeto da ciência e dele é retirado o componente 
			religioso, passando a considerar apenas sua natureza física e 
			biológica.
			A filosofia cartesiana traz uma nova abordagem a respeito do corpo, 
			mantendo e explorando ainda o dualismo psicofísico: o ser humano é 
			constituído por duas substâncias distintas. A substância pensante, 
			de natureza espiritual, o pensamento e a substância material, o 
			corpo.
			De certa forma o dualismo platônico se faz presente. A diferença 
			está em se tratar o corpo como objeto, associada à idéia mecanicista 
			do ser-humano máquina.
			“Deus fabricou nosso corpo como máquina e quis que ele funcionasse 
			como instrumento universal, operando sempre da mesma maneira, 
			seguindo suas próprias leis.” Descartes
			Com o desenvolvimento das ciências, o modelo mecânico vai se 
			tornando cada vez mais elaborado, porém mantém-se o corpo associado 
			à mensão material, corpórea e sujeito ás forças determinantes da 
			natureza. O indivíduo deixa de ser responsável pelo próprio destino. 
			São pressupostos materialistas que tornam-se cada vez mais 
			relevantes, representando certo impecilho para o desenvolvimento das 
			ciências humanas no final do século XIX, em razão da dificuldade em 
			restabelecer as ligações entre as duas realidades que compõem o ser 
			humano.
			Somente no Séc. XX surgiram correntes filosóficas que tentaram 
			superar a dicotomia corpo-consciência para restabelecer a unidade 
			humana.
			Baruch Espinosa (1632-1677) foi uma exceção. Filósofo judeu holandês 
			escreveu várias obras mal compreendidas e quase nunca lidas tanto no 
			seu século como nos subseqüentes. Considerado por muitos um filósofo 
			determinista no momento em que negaria a liberdade humana, ao 
			contrário, ele faz uma crítica a toda forma de poder, tanto político 
			como religioso. Busca esclarecer os obstáculos à vida em liberdade, 
			querendo descobrir o que leva o homem à servidão e à obediência, o 
			que permite e o que impede o exercício da liberdade.
			Traz como inovador para seu tempo a teoria do paralelismo. A relação 
			existente entre corpo-espírito não é de causalidade, mas de 
			expressão e simples correspondência: o que se passa em um deles se 
			exprime no outro. Nem o espírito é superior ao corpo, nem o corpo 
			determina o espírito.Alma e corpo exprimem, no seu modo, a mesma 
			coisa. Desse modo, tanto alma como corpo podem ser ativos ou 
			passivos. Quando ativos, o somos de corpo e alma, sendo autônomos e 
			senhores de nossa ação. A virtude da alma, sua força e poder, 
			consiste na atividade de pensar, de conhecer. Quando está então 
			voltada para si mesma, capaz de produzir idéias, passa a uma 
			perfeição maior, percebe-se ativa e é afetada pela alegria. Quando 
			diante de uma situação a alma não consegue entender, percebe-se 
			impotente, causando o sentimento de diminuição e tristeza(é a alma 
			passiva).
			É da natureza do corpo afetar outros corpos e ser afetado por eles. 
			Essa relação de afecção determina duas posições diferentes: o corpo 
			que nos afeta pode se “compor” com o nosso, a sua 
			potência(capacidade de agir) se adiciona à nossa, provoca um aumento 
			da nossa potência e passamos a uma perfeição maior, tendo como 
			resultado a alegria e um corpo ativo. Mas se ao contrário, há um 
			encontro entre dois corpos que não se “compõem”, ocorre uma 
			diminuição de nossa potência, gerando tristeza e um corpo passivo.
			No sentido etmológico, a palavra paixão significa “padecer”, 
			“sofrer” e Espinosa denomina tanto a alegria como a tristeza de 
			paixões. Nos dois casos, não somos nós que agimos, a ação tem uma 
			causa exterior e nós permanecemos passivos. O que as difere é que 
			paixão alegre nos potencializa, ou seja, nos aproxima do lugar em 
			que nos tornamos senhores da ação. Enquanto que a paixão triste nos 
			afasta cada vez mais da nossa potência de agir, como geradora de 
			ódio, aversão, temor, desespero, indignação, inveja, crueldade, 
			ressentimento.
			Fica claro então que o dilema do homem é evitar a paixão triste e 
			propiciar a paixão alegre. Mas para Espinosa, diferentemente de 
			outros filósofos que estabelecem hierarquias e pretendem subjulgar 
			as paixões à razão ou vice-versa, liberdade é autodeterminação, é 
			autonomia. Somos autônomos quando o que aconteceu em nós é explicado 
			pela nossa própria natureza e não por causas externas. Esta 
			conquista se faz quando conseguimos estar mais ativos, sobrepondo as 
			paixões alegres sobre as tristes.
			A fenomenologia vem com o conceito de intencionalidade tentar 
			superar as dicotomias corpo-espírito, consciência-objeto e 
			indivíduo-mundo. O corpo é visto como o primeiro momento da 
			experiência humana. Ao estabelecer contato com outra pessoa, o corpo 
			se revele como “eu sou”. O movimento corporal não é mecânico. O 
			gesto diz algo e revela o sujeito. É um corpo humano que revela uma 
			facticidade no sentido de “estar lá com as coisas” mas é também 
			acesso às coisas e a si mesmo, na possibilidade de transcendência. 
			Pode-se argumentar que a dor e a doença são então manifestações de 
			pura corporeidade. Porém, a facticidade nunca se separa da 
			transcendência, que mostra o sentido que o indivíduo dá à sua doença 
			ou no uso que o indivíduo faz dela.
			A doença traz outros ocultos sentidos. Pode ser útil para despertar 
			a atenção do outro, a sua complacência, o abrandamento de sua 
			severidade. Pode também representar a forma sádica pela qual 
			sacrificamos os que nos rodeiam, ou ainda a forma de nos esquivarmos 
			de certas obrigações. Podem até mesmo tornar-se condição de domínio 
			de si, como no caso de Demóstenes, quando a gagueira o incita a ser 
			um grande orador.
			Freud, no Século XX desenvolveu sua teoria do funcionamento da mente 
			e demonstrou como o corpo pode ser uma forma de somatizar os 
			conflitos internos, tais como paralisias e alucinações na Histeria.
			A filósofa norte-americana Susan Sontag em seu livro A Doença como 
			Metáfora, analisa por exemplo a doença clássica do Séc.XIX, a 
			tuberculose a mais recentemente, o câncer.
			“Qualquer doença encarada como um mistério e temida de modo muito 
			agudo será tida como moralmente, se não literalmente, contagiosa.”
			As pessoas acometidas pela tuberculose em sua época, ou por câncer 
			posteriormente, eram afastadas de seus familiares e objeto de 
			descontaminação por parte das pessoas da casa, como se fossem 
			doenças transmissíveis. O mesmo aconteceu recentemente com a AIDS, 
			tendendo a estigmatizar as vítimas. “Mas para afastar as 
			metáforas,não basta abster-se delas.É necessário desmascará-las, 
			criticá-las, atacá-las, desgastá-las.
			Há também o corpo usado para debilitar o espírito e curvá-lo ao 
			poder superior. A história registrou diversos exemplos de suplícios 
			sofridos pelos que ousaram desafiar as regras estabelecidas como 
			tabus pelo poder hierárquico. Franz Kafka, no conto A Colônia Penal, 
			ilustra o que Michael Foucault descreve como poder disciplinar. 
			Kafka relata o prisioneiro que tem sua pele marcada com uma máquina 
			tipo estilete, com a lei que foi por ele transgredida. “Respeite 
			seus superiores”, de modo que ele mesmo não a veja, bastando 
			conhecê-la na própria carne e decifrá-la com suas feridas, sem saber 
			nem mesmo ter sido condenado, sem direito de defesa.
			Em sua análise, Foucault(1926-1984) faz um levantamento de 
			documentos dos séc. XVII e XVIII descrevendo de que forma o poder 
			vem disciplinando os corpos.” O corpo só se torna força útil se é ao 
			mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso”. Há um tipo de poder 
			disciplinar diferente daquele que antes existia e era exibido nos 
			conventos e nas oficinas. Trata-se de um poder que volta-se para 
			fins utilitários, regido pelo modelo capitalista de produção. É 
			também um poder não dito em linhas, mas inscrito nas entrelinhas da 
			organização e do controle do tempo e do espaço. Um poder que não 
			está somente no aparelho do Estado, mas em diferentes pontos do 
			próprio seio da sociedade como nos colégios,hospitais, asilos, 
			fábricas, quartéis e prisões.
			Com esta tão longa tradição de desvalorização do corpo e das 
			paixões, de seu controle e normatização, temos à partir da década de 
			1960 um esforço de libertação das amarras do corpo. Mudanças que não 
			seguem o viés do amadurecimento do sujeito, e nem ao menos a 
			recuperação da autonomia em equilíbrio no cuidar de si.
			No final do Séc. XX vemos surgir o fenômeno da corpolatria, do 
			endeusamento do corpo. Observa-se o cultivo de formas do corpo de 
			maneira impositiva e tirana, sob regime de controle alimentar, 
			exercícios físicos, modeladores, plásticas, estratégias essas que 
			não levam à satisfação e seguem um modelo de consumo em gerações que 
			têm medo de envelhecer e morrer.
			Nesse processo, cresce um tipo de individualismo narcisista em que 
			cada um vive para si próprio.Para o filósofo Gilles Lipovetsky:
			“O narcisismo realiza uma missão de normalização do corpo: o 
			interesse febril que temos pelo corpo não é de modo nenhum 
			espontâneo e livre, obedece a imperativos sociais como a linha, a 
			forma, o orgasmo, etc. O narcisismo joga e ganha todos os 
			tabuleiros, funcionando ao mesmo tempo como operador de 
			desestandartização e como operador de estandartização, sem que esta 
			última se apresente jamais como tal, mas como sujeição às exigências 
			mínimas da personalização: a normalização pós moderna apresenta-se 
			sempre como único meio de o indivíduo ser realmente ele 
			próprio,jovem esbelto,dinâmico.”
			A Bioética hoje faz um convite para pensarmos a mutação que concerne 
			ao futuro humano. O modo como a aceleração do capitalismo engatou na 
			aceleração tecnocientífica.
			A geração de hoje está tendo que fazer escolhas éticas e opções 
			tecnológicas decisivas. São questões relativas ao transumano, ou 
			mesmo ao pós-humano. É a tecnologia não mais á serviço do homem, mas 
			gerando um novo conceito do que é ser humano.
			Esse modo de gerir subjetividades coletivas influencia fortemente o 
			campo da saúde. O mercado altamente lucrativo do medicamento surge 
			como principal força econômica na saúde, ao lado da tecnologia de 
			diagnóstico. Podemos metaforizar como uma “guerra terapêutica”, com 
			fabulosas campanhas de marketing, formulando campanhas que modulam 
			hábitos dos profissionais e dos usuários, buscando a concepção “fast 
			food” no consumo em saúde.
			A ética do psicólogo acupunturista gira em torno dessas questões, 
			quando o paciente chega queixando-se de sua dor. Precisamos refletir 
			sobre a diferença entre dor e sofrimento. Enquanto queixa-se de dor, 
			o discurso segue a lógica biologicista explicativa e capturante do 
			sujeito, que se asujeita à sua dor, ao invés de formar-se enquanto 
			sujeito que opera sobre seu sofrimento. A passividade domina o 
			indivíduo quando algo em si dói, esperando que algum fator externo 
			ou alguém “cure” a sua dor, taga-lhe a solução desejada. É a captura 
			do sujeito pelo sistema.
			O sofrimento está relacionado ao simbólico, em tornar o sujeito 
			ativo no processo de cura, refletindo e mudando hábitos de vida que 
			podem estar sendo agravantes em seu adoecer. É a busca da autonomia 
			do sujeito na prática do cuidado em saúde. Sem representação, sem 
			transcender, sem simbolizar, a transformação ou a elaboração deixa 
			de existir, dando lugar para o imediatismo do alívio da dor. A 
			sociedade se prepara cada vez menos para o enfrentamento de sua dor, 
			sem a qual não há estruturação de um sujeito autônomo.
			Na acupuntura esta captura aparece no cotidiano do atendimento 
			ambulatorial. Sendo esta técnica rica na diversidade de combinações 
			para o tratamento, facilmente o aluno-profissional vê-se angustiado 
			para encontrar a solução no alívio dos sintomas apresentados.
			A reflexão sobre a ética do profissional de acupuntura no referido 
			ambulatório se faz no dia a dia, no acompanhamento de cada aluno no 
			aprendizado do atendimento aos pacientes que ali chegam. É na ação 
			micropolítica que percebemos o fator ética nas relações que se 
			estabelecem entre os alunos-professores-usuários em acupuntura.
			Cada aluno-profissional, em sua ação cotidiana inclui sua produção 
			subjetiva em ato, produz o cuidado em saúde através da acupuntura 
			além de produzir a si mesmo como sujeito no mundo.
			Ao entrar em contato com todo o aparato teórico que fundamenta a 
			Medicina Tradicional Chinesa o conflito interno está subliminar ao 
			seu comportamento. Porém, ao entrar para o campo de estágio, ao 
			“laboratório de aprendizagem prática”, o conflito emerge para a 
			superfície de maneira espantosa.
			Com fundamentação teórica de Deleuze e Guatarri (1972,1995), é a 
			demonstração viva da subjetividade atuando na construção do socius. 
			O cenário do ambulatório de acupuntura torna-se fomento de 
			aprendizado ético na formação do acupunturista. A produção das 
			subjetividades que atuam nesse cenário que, no ato cuidador vão se 
			construindo, é impulsionada pelo desejo, vai se instituindo pelo que 
			pode ser chamado de “fatores de afetivação”, isto é, acontecimentos 
			que atuam como dispositivos sociais.
			Em Análise Institucional, o Trabalho Vivo em Ato vai instituindo, em 
			um processo simultâneo de formação (cuidado-cuidador) a 
			subjetividade do profissional-aluno. Esta subjetividade construída 
			social e historicamente, alicerçada em encontros, vivências, 
			acontecimentos, relações. O professor-supervisor age ali como um 
			agenciador de desejos, capaz de operar na formação de cuidadores 
			através da dinâmica experiência relacional.
			O aluno-profissional de saúde chega com o modelo biomédico já 
			conhecido e algumas vezes já instituído em sua prática de 
			atendimento. Quando procura a formação em acupuntura defronta-se com 
			um paradigma diferenciado, um modo de pensar e agir em saúde 
			centrado no paciente, baseado na integração corpo-mente-espírito. 
			Enquanto este novo modo de pensar está se dando na sala de aula o 
			embate encontra-se ainda muito no campo das idéias. Quando o cenário 
			passa a ser o trabalho Vivo em Ato, o conflito gera um grande 
			desconforto. É a exigência de se “desconstruir”, de se “deixar 
			esvaziar” para reaprender um novo modo de pensar a saúde.
			A ética do psicólogo acupunturista compartilha desse momento. A 
			psicologia, saber de berço questionador e reflexivo, inserida no 
			campo de procedimentos e patologias do tipo hérnia de 
			disco,distensão muscular,hemiplegia. Aprendendo “pontos” 
			anti-inflamatórios, pontos que fazem o intestino funcionar, pontos 
			que trazem a performance da ereção e ejaculação.
			Sabemos que esta ética precisa ser construída, tendo como centro o 
			campo relacional do trabalho vivo em ato. É um processo que 
			necessita de espaços de fala, de escuta, de olhares e reflexões 
			significativas entre alunos-profissionais, supervisores-formadores e 
			usuários. É um agir relacional de desejos, na dinâmica sistêmica 
			entre os diferentes atores da cena em saúde. O ser humano é um ser 
			social, um ser relacional. Nessas relações o poder está presente de 
			diferentes formas, num jogo de forças que vão delineando as formas 
			de agir no mundo.É a ética que vai circunscrever até onde, ou a 
			maneira do agir em cada um dos atores. Existem diferentes éticas, 
			caberá a cada um de nós escolher qual delas seguir. Como enxergar a 
			invisibilidade que se expõe na algia dita. Como incitar a percepção 
			do sofrimento que há por detrás da dor relatada. É o exercício do 
			olhar não somente para os corpos que ocupam papéis tão bem 
			instituídos, mas o que está entre os corpos, o que, na linguagem da 
			própria Medicina Tradicional Chinesa seriam os “sinais” e não os 
			“sintomas” (sinais são os indicadores do acupunturista e sintomas as 
			queixas trazidas pelo paciente).
			
			
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